INTRODUÇÃO
A educação infantil é a primeira etapa da educação
básica e destina-se a crianças de zero a seis anos de idade. O atendimento à
criança pequena é uma necessidade, principalmente nos grandes centros urbanos.
Nesse período pode ser considerado, hoje, não só uma necessidade decorrente das
condições de vida nos grandes centros urbanos, mas uma realidade. As
peculiaridades dessa faixa etária, exigem que a educação infantil cumpra duas
funções indissociáveis e complementares: cuidar e educar. A sociedade tem
exercido influência para que as crianças sejam colocadas cada vez mais cedo, e
num período maior de tempo, em instituições de educação infantil.
Apesar de não haver dados precisos sobre o
atendimento infantil em instituições no País como um todo, estima-se que 40%
dessas crianças estejam sendo atendidas em instituições de educação
infantil.3,13
O desenvolvimento integral da criança depende
tanto dos cuidados que envolvem a dimensão afetiva quanto dos aspectos
biológicos do corpo, tais como: qualidade da alimentação e os cuidados com a
saúde, e a forma como são oferecidos.
Na literatura, são poucos os instrumentos de triagem
específicos para detecção de alterações na linguagem em lactentes. Observa-se
um grande número de trabalhos que avaliam crianças a partir dos três anos de
idade, mas quase nenhum que estudasse o primeiro ano de vida.
Entretanto, a aquisição de linguagem ocupa papel
central no desenvolvimento nos primeiros anos de vida. Assim, seria esperado
que funcionasse como um indicador, sensível, de integridade geral de
desenvolvimento. A triagem do desenvolvimento da linguagem é um meio razoável
de avaliar a "integridade de vários subsistemas neurais incluindo a
audição, o processamento auditivo central, o desenvolvimento cognitivo, a
função motora de articulação, de praxia de membros superiores, a visão e o
processamento central da informação visual".4 A dificuldade da criança em
adquirir a linguagem nos padrões normais é quase sempre um indício de algum
tipo de problema de desenvolvimento subjacente.
A linguagem pode ocorrer por intermédio de dois
canais: o canal auditivo, englobando a fala e sua compreensão e o canal visual,
necessário para a leitura e escrita, para os gestos e para a Língua de Sinais,
utilizada pelos indivíduos surdos. O lactente ouvinte faz uso da vocalização,
da compreensão auditiva e dos gestos para a comunicação com outras pessoas
(comunicação visual social).
No que se refere à visão, sabe-se que esta
contribui muito para o desenvolvimento da criança, pois é um fator de
motivação, orientação e controle de movimentos e ações. O desenvolvimento da
visão, assim como o desenvolvimento de outras funções do organismo, é permeado
por fatores de maturação neurológica e de aprendizagem. É determinado por
fatores genéticos e influenciado por fatores ambientais.6
É no primeiro ano de vida que se efetuam as
modificações mais importantes no desenvolvimento da criança, quando se
apresentam grandes saltos evolutivos em menores períodos de tempo. Assim, em
sua relação de reciprocidade no desenvolvimento, as transformações nas
habilidades motoras axial e apendicular, que ocorrem ao longo do primeiro ano
de vida, favorecem o aprimoramento das habilidades visuais.5
Sabe-se que, no desenvolvimento da linguagem, o
profissional da área da saúde freqüentemente superestima as habilidades da
criança. Esse dado concretiza-se, quando se analisa o pequeno número de
crianças de até três anos de idade, que são encaminhadas para avaliação de
linguagem. Estima-se que 2% a 3% das crianças dessa idade possuam algum tipo de
atraso de desenvolvimento de linguagem, excetuando-se aquelas com retardo
mental, paralisia cerebral e surdez.4
A prevenção e a detecção precoce de alterações no
desenvolvimento infantil são práticas pouco aplicadas no Brasil. No caso das
deficiências sensoriais, essa preocupação justifica-se pela possibilidade de
antecipação do processo de intervenção logo no início de vida da criança,
garantindo a estimulação necessária em todos os aspectos fundamentais para seu
desenvolvimento global. Nessa área, os procedimentos de triagem são utilizados
por se caracterizarem como instrumentos de baixo custo, de simples aplicação e
eficientes.
Portanto, o presente trabalho teve como objetivo
investigar como se processa o desenvolvimento da linguagem e das funções
visuais e auditivas em lactentes de creche, no primeiro ano de vida.
MÉTODOS
Foram avaliados 115 lactentes que freqüentavam uma
creche da área de saúde de uma universidade do Estado de São Paulo, filhos de
funcionárias que trabalham nessa universidade, em horários de turnos, nos anos
de 1998 a 2001.
Os 115 lactentes foram separados em três grupos,
de acordo com sua faixa etária:
• Grupo 1: 43 lactentes entre 3
meses e 16 dias até 6 meses e 15 dias.
• Grupo 2: 46 lactentes entre 6
meses e 16 dias até 9 meses e 15 dias.
• Grupo 3: 26 lactentes entre 9
meses e 16 dias até 12 meses e 15 dias.
Para a avaliação, foi utilizado o "Protocolo
de Observação do Desenvolvimento da Linguagem e das Funções Auditiva e
Visual", com 39 provas, sendo 10 relacionadas à linguagem, 11 para testar
a função auditiva e 18 a função visual social.
Nas questões de desenvolvimento da linguagem e das
funções visual e auditiva, o Protocolo consta de algumas provas da "Early
Language Milestone Scale" (ELM),4 selecionadas por Lima,8 das "Bayley
Scales of Infant Development",2 com provas selecionadas por Gagliardo.6
Tendo em vista a necessidade de se avaliar o
lactente em período do dia em que ele se encontrava tranqüilo em sua rotina de
atividades e por pessoas familiares a ele, decidiu-se capacitar as próprias
educadoras da creche, módulo berçário, a fim de que pudessem estar aptas a
observar as etapas de desenvolvimento de cada lactente.
Alguns itens do Protocolo podiam ser observados na
interação informal, com atividades desenvolvidas na creche com os lactentes ou
testados diretamente, tais como nas provas de localizar o som de um sino na
lateral ou na prova de imitar jogos gestuais.
Os pais dos lactentes avaliados, assim que
inscreveram seus filhos na creche, assinaram uma autorização prévia para a
avaliação rotineira das crianças. Como esse projeto está incorporado ao sistema
de avaliação dos lactentes, não houve assinatura do Consentimento Livre e
Esclarecido, específico para essa finalidade.*
A capacitação das educadoras da creche, para a
aplicação do Protocolo, consistiu de cinco fases:
• Primeira fase - No ano de
1998, em encontro de uma das autoras do Protocolo, fonoaudióloga, com a equipe
de educadoras da creche "Área de Saúde" para informá-las e
sensibilizá-las nas questões das alterações de linguagem, de problemas
auditivos e visuais. Discutiu-se o significado de uma triagem e a justificativa
para a realização de tal procedimento. Dentre as funcionárias da creche, foi
escolhida uma agente multiplicadora, pedagoga, bastante familiarizada com o
material que seria aplicado.
• Segunda fase - Demonstração
do Protocolo ao agente multiplicador. Foi então escolhido o melhor local da
creche para a aplicação da triagem.
• Terceira fase - Ações
pedagógicas utilizadas pelo agente multiplicador, na capacitação das educadoras
berçaristas, para a aplicação do Protocolo. Foi feita demonstração e orientação
da aplicação de cada prova do Protocolo às berçaristas com lactentes de
diversas faixas etárias. Foi realizado planejamento dessas ações de prevenção
articuladas com o programa educativo da creche.
• Quarta fase - Aplicação por
parte das educadoras berçaristas, sem a presença do agente multiplicador,
utilizando as orientações práticas e teóricas fornecidas.
• Quinta fase - Para se saber
se as educadoras haviam registrado de forma adequada as respostas dos
lactentes, fez-se necessário que a autora do Protocolo avaliasse a aprendizagem
da utilização do procedimento realizado por elas. Houve uma reavaliação, pelas
autoras do Protocolo, das crianças triadas pelas educadoras e o agente
multiplicador, em lactentes escolhidos aleatoriamente.
Para análise descritiva dos dados, foi utilizado o
Programa "Epidemiologic Information 6.0" (Epi Info). Para comparar os
estudos com as variáveis de interesse, foram utilizados os testes Qui-quadrado
ou Exato de Fischer, quando necessário. O nível de significância adotado foi de
5%.
RESULTADOS
As educadoras berçaristas avaliaram 115 lactentes,
na faixa etária de três meses e 15 dias a 12 meses e 15 dias. Apesar do
Protocolo avaliar lactentes desde o primeiro mês de vida, no presente trabalho
foram considerados apenas lactentes com mais de três meses de idade, pois é
nessa idade que começam a freqüentar a creche.
No Grupo I, os resultados das provas da Escala
ELM4 estão na Tabela 1.
Além disso, foram avaliadas provas das Escalas
BAYLEY:2 leva mão ao objeto, realizada por 41 (95,3%) lactentes e segura objeto
em cada mão, realizada por 26 (60,5%) lactentes.
No Grupo II, os resultados das provas da Escala
ELM4 estão na Tabela 2:
Além disso, foi avaliada a prova das Escalas
BAYLEY,2 transfere objeto de mão, realizada por 35 (85,4%) dos lactentes.
No Grupo 3, os resultados das provas da Escala
ELM4 estão na Tabela 3.
As provas das Escalas BAYLEY2 avaliadas foram:
preensão polegar/ indicador (pinça) e colocação de um cubo sobre o outro.
A prova preensão polegar/indicador (pinça) foi
realizada por 10 (38,5%) lactentes. A prova colocar um cubo sobre o outro, foi
realizada por cinco (19,2%) lactentes.
Para verificar a atuação das berçaristas enquanto
avaliadoras, as autoras do Protocolo reavaliaram uma amostra de cinco lactentes
em cada ano, de 1998 a 2001. As avaliações corresponderam a 100% das avaliações
feitas pelas educadoras.
DISCUSSÃO
Foi observado que das 16 provas avaliadas, nos
três Grupos, 10 foram realizadas dentro da faixa etária esperada, ou seja,
produção de sílaba simples, localização de som na lateral, na diagonal,
inibir-se ao "não", seguir objeto visualmente, piscar para o perigo,
apontar para objetos desejados. As seis provas restantes (produção de bolhas,
de sílaba repetida, de mamã e papá, da primeira palavra e de imitar e iniciar
jogos gestuais) apresentaram resultados estatisticamente significativos se
comparados com estudos anteriores, principalmente os de Lima8,9,10 (1997),
Coplan4 (1983), Azevedo1 (1995) e Gagliardo.6
Observou-se que os lactentes na produção do
balbucio polissilábico e das primeiras palavras apresentaram um padrão
diferente no desenvolvimento da linguagem.
Além disso, encontrou-se um número reduzido de
crianças imitando e produzindo espontaneamente jogos gestuais sociais, o que
mostra que, embora não tenham sido encontradas evidências de que haja alteração
no desenvolvimento da linguagem (oral e gestual), o ambiente creche
provavelmente propicie condições para um padrão diferente do encontrado por
outros autores 5,8,10,12 em lactentes que permaneciam grande parte do tempo com
um responsável, em geral a mãe, em situações de interação um a um. Outro
elemento a ser considerado é a quantidade de estímulos visuais e sonoros que se
encontra em um ambiente coletivo, como o berçário de creche. Talvez o
desenvolvimento de linguagem em lactentes não siga um padrão de desenvolvimento
universal.
A avaliação auditiva, pela prova de localização
sonora, detectou alteração em duas crianças, sendo confirmada pela presença de
otite média.
No Grupo 1 (Tabela 1), na prova "produção de
bolhas", aos seis meses, um número menor de lactentes produzia essa prova,
se comparado com Lima8 que encontrou todas os lactentes realizando a prova
nessa idade. Coplan4 encontrou grande maioria dos lactentes estudados
produzindo vibração de lábios na metade do primeiro ano de vida.
No que se refere às provas de função visual,
"segue objeto e pisca para o perigo", no Grupo I, as respostas
obtidas estão de acordo com a literatura,4,7,11 ou seja, são comportamentos
apresentados pela maioria dos lactentes estudados aos 4 meses de idade.
As provas de localização de sino na lateral, à
direita e à esquerda, foram executadas por todos os lactentes, estando de
acordo com a literatura. A partir de três meses, há o aparecimento de respostas
como procura de fonte e localização lateral no plano da orelha, caracterizando
uma evolução das respostas em decorrência do processo de maturação do Sistema
Nervoso Central.1,4,12 A ausência de localização do sino à esquerda em uma
criança foi explicada pela presença de otite média, diagnosticada por médico
otorrinolaringologista após encaminhamento da creche.
No Grupo 2, Tabela 2, os lactentes que realizaram
as provas relacionadas à linguagem, ou seja, início da produção de sílaba
simples (balbucio monossilábico) e de sílaba repetida (balbucio polissilábico)
ficaram abaixo do esperado para a idade cronológica dos lactentes.
Entretanto, ao se analisar mês a mês, observou-se
que cinco lactentes não produziam sílabas simples aos sete meses, um lactente
aos oito meses e um outro aos nove, sendo esta uma criança que estava
apresentando otite média de repetição. Observa-se que o balbucio monossilábico
ocorreu, de fato, na mesma faixa etária que o grupo estudado por Lima,8,10 pois
a maioria estava balbuciando sílabas simples aos oito meses. Coplan4 encontrou
a produção de sílaba simples em lactentes com mais de oito meses de idade
cronológica.
Quanto ao balbucio polissilábico, 25 (54,3%) não
produziam sílabas repetidas até os nove meses, uma freqüência bastante abaixo
do encontrado por Lima,8,10 de 100% de produção aos nove meses e por Coplan,4
com 75% dos lactentes realizando essa prova. Esse número se manteve com os 15
lactentes aos nove meses completos, pois apenas oito (53,4%) deles emitia o
balbucio polissilábico.
Quanto à imitação de jogos gestuais, foi
encontrado que 19 (41,3%) das crianças da creche apresentaram essa prova até os
nove meses. Os lactentes estudados por Lima,8,10 na sua maioria, apresentaram
imitação de gestos aos nove meses.
As duas provas citadas com diferença significativa
de respostas, produção de sílaba repetida e imitação de jogos gestuais, quando
comparadas aos dois estudos anteriores,3,6 dependem de estimulação e talvez de
uma interação maior do adulto com o bebê. Rubino14 afirma que, a partir do
momento em que o bebê é capaz de vocalizar sons com características próximas
aos da fala adulta, a mãe passa a especular produções sonoras da criança. A mãe
reflete de volta para a criança a imagem de seus gestos vocais. Além disso, ela
começa a interpretar as produções vocais da criança. A ausência da função de um
adulto realizando essa atividade conjunta com o lactente pode levar a esse
desenvolvimento diferenciado apresentado pelos lactentes da creche, com um
número menor deles realizando o balbucio.
Situação similar ocorreu também com a prova
"imita jogos gestuais". Provavelmente, o fato do lactente não contar
com um adulto mais próximo a ele em situações de brincadeiras gestuais do tipo
bate palminha e joga beijo faz com que o aparecimento desse comportamento venha
a aparecer em outro período que não o encontrado em estudos anteriores.4,8,9
Os lactentes apresentaram respostas consistentes
na recepção de sons, ou seja, localizaram sino de forma indireta, o que se
encontra compatível com a literatura.1,12 Foi observado que, aos oito meses,
todas as crianças são capazes de localizar sons situados abaixo ou acima do
nível da orelha, de forma indireta.1 Uma criança não apresentou resposta ao
sino, mas se verificou, posteriormente, a presença de otite. Na prova
"inibe-se ao 'não'", ou seja, compreensão inicial de uma ordem
simples, as respostas foram compatíveis com as de Lima,8 que encontrou
compreensão do "não" na maioria dos lactentes aos nove meses.
No Grupo 3, observa-se, quanto ao uso da linguagem
expressiva, que 14 (53,8%) lactentes estavam falando mamã/papá e 10 (38,5%), a
primeira palavra. Este última prova ficou aquém do encontrado por Lima,8,10 com
75,6% dos lactentes produzindo a primeira palavra aos 12 meses. Dos cinco
lactentes com 12 meses completos, nenhum emitia a primeira palavra. Coplan4
encontrou 70% de lactentes emitindo a primeira palavra aos 12 meses de idade.
Seria esperado que mais da metade dos lactentes, até em situação de imitação da
palavra do adulto, incorporasse parte do enunciado deste, com modificações
adequadas ao seu próprio nível de desenvolvimento.
Nas provas relacionadas à recepção de sons, ou
seja, localização de sino para baixo diretamente, 100% dos lactentes a estavam
executando, estando de acordo com os dados encontrados por outros autores.1,8
A prova "inicia jogos gestuais" foi
realizada por 15 (57,7%) lactentes, um número abaixo do encontrado por Coplan4
e Lima,8 em que a maioria dos lactentes produziu essa prova aos 11 meses.
A prova "aponta para objetos desejados"
foi realizada por 14 (53,8%) lactentes, um número maior do que o encontrado por
Lima,8,9 que foi de 35,6%.
A participação no processo de construção de novos
conhecimentos, tanto no que diz respeito ao processo de desenvolvimento quanto
às questões de prevenção e detecção de alterações no desenvolvimento de
linguagem e das funções auditiva e visual na área da educação infantil,
implicou um investimento inicial na formação dos educadores. Foi preciso haver
integração das áreas de saúde e educação para acompanhar o desenvolvimento dos
lactentes nas questões de linguagem e das funções auditiva e visual.
Em conclusão, encontrou-se número reduzido de
crianças realizando determinadas provas relacionadas ao desenvolvimento de
linguagem. Entretanto, não foram encontradas evidências de alterações no
desenvolvimento desses lactentes. Muito provavelmente, o ambiente creche esteja
propiciando condições para um padrão diferente de desenvolvimento de linguagem
que não segue o padrão universal.
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