A Polícia Federal deflagrou uma
operação para reprimir a máfia que retém cartões do Bolsa Família nas
cidades do Alto Solimões, no Amazonas.
Um
grupo de 20 agentes recolheu, ao longo da semana passada, cartões de
beneficiários indígenas do programa social que estavam em poder de nove
comerciantes de Atalaia do Norte, município a 1.350 quilômetros por via
fluvial de Manaus. O número de documentos apreendidos ainda está sendo
contabilizado. A polícia recolheu também anotações de vendas, registros
de senhas, cadernos de apontamentos de dívidas, comprovantes de saque e
extratos bancários.
O mandado
de busca e apreensão dos cartões foi expedido pela Justiça Federal em
Tabatinga. Nos próximos dias, o delegado federal Vinícius Ferreira,
coordenador da operação, ouvirá os comerciantes envolvidos no esquema.
Eles poderão ser indiciados e responder a processos por crimes de
apropriação indébita, estelionato em detrimento de instituições
financeiras e furto. As investigações continuam em outros municípios com
predomínio da população indígena. “A Polícia Federal vai coibir essa
prática que desvirtua a proposta do programa social do governo”, afirmou
Vinícius Ferreira. O delegado pretende ouvir ainda os indígenas que
foram vítimas do grupo.
A operação foi posta nas ruas após semanas de
investigação em Atalaia do Norte. A polícia já tem indícios de que o
crime de reter os cartões ocorre também nas demais cidades amazonenses
da região da tríplice fronteira do Brasil com a Colômbia e o Peru. As
famílias entregam inclusive as senhas para os comerciantes. Eles mesmos
vão à casa lotérica retirar o dinheiro do benefício e fazem o
acompanhamento da movimentação das contas.
‘Sistema do barracão’
As
dívidas das famílias beneficiadas pelo programa, porém, só aumentam.
Varney da Silva Tavares Kanamari, presidente da Associação dos Kanamaris
do Vale do Javari, afirma que os comerciantes inflam os preços dos
produtos alimentícios para garantir o controle dos “parentes” que moram
nas aldeias. Os comerciantes, por sua vez, argumentam que retêm os
cartões como garantia de pagamento de dívidas. É o velho “sistema do
barracão” do começo do século XX: o dono de seringal fornecia alimentos e
outros produtos para seus empregados que, diante do aumento da dívida,
não podiam deixar o trabalho sob pena de tortura e morte.
A
história da máfia dos cartões do Bolsa Família em Atalaia do Norte foi
contada no caderno especial e em multimídia para a internet Favela
Amazônia, um novo retrato da floresta, publicado em 5 de julho pelo
Estado. Por meio de textos, vídeos, fotografias e áudios, o jornal
mostrou comerciantes que retinham cartões do Bolsa Família e da
Previdência. O município tem o terceiro pior Índice de Desenvolvimento
Humano do País e apresenta elevados índices de desnutrição e morte de
crianças. Famílias vítimas do esquema relataram que não acompanham a
movimentação da conta do benefício. A máfia tinha apoio de casas
lotéricas.
Antes da publicação da reportagem, o jornal apresentou
três vídeos de comerciantes que retinham cartões para a ministra do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), Tereza Campello.
Responsável pelo programa Bolsa Família, ela demonstrou indignação com o
“crime” praticado pelo comércio do município e encaminhou a denúncia e
apurações feitas depois por sua equipe para a Polícia Federal, em
Brasília.
Migração
No País, 133.161
famílias indígenas recebem o Bolsa Família. O programa levanta polêmicas
no Alto Solimões. Beto Marubo, do movimento indígena da região, avalia
que o benefício incentiva a migração de famílias do Território Indígena
do Vale do Javari, área do tamanho do Estado de Santa Catarina, para a
região urbana em Atalaia do Norte. “Os programas sociais do governo não
entram nas aldeias”, ressalta. Ele observa que para sacar o dinheiro do
Bolsa Família, os índios precisam fazer viagens de canoa de até duas
semanas até o centro da cidade. Depois, não têm dinheiro para pagar o
combustível da volta.
Alguns índios conseguiram recuperar o cartão, como o casal Maria Rodrigues e Raimundo Kanamari, de Atalaia do Norte.
A
partir da reportagem, o ministério aumentou o prazo de saque dos
cartões de três para seis meses, permitindo que as famílias façam menos
viagens ao ano. Técnicos do ministério avaliam outras propostas para
evitar fraudes.
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