Em 1988, ao se promulgar a nova Constituição da República, o direito à saúde foi reconhecido de maneira soberba e generosa, talvez com o intuito de o País se redimir de por tantos anos ter considerado as pessoas – que não estavam sob a égide da proteção do Regime Geral de Previdência Social – como indigentes, as quais ficavam ao sabor da caridade pública social.
Mas não foi simples garantir o direito à saúde no texto constitucional. Uma árdua luta na Assembleia Nacional Constituinte entre o que se denominou de “Centrão” e as forças políticas progressistas apoiadas pelas forças sociais que defendiam que fosse promovida uma reforma sanitária, com o direito à saúde no seu centro.
A reforma sanitária foi vitoriosa. Quando se lê a sessão saúde inserida no capítulo da seguridade social, tem-se essa certeza. Contudo, foi necessário criarem-se consensos entre essas forças políticas que se debatiam na Casa do Povo ante as realidades existentes. Nesses acordos políticos, a liberdade da iniciativa privada foi inserida na Constituição tanto quanto a supressão da expressão “são de natureza pública as ações e serviços de saúde”, que passaram para “são de relevância pública as ações e serviços de saúde”.
No campo da liberdade da iniciativa privada para atuar na saúde, é relevante destacar o texto do art. 199: A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.
Primeiro ponto a considerar é que a iniciativa privada somente pode atuar na saúde em áreas definidas como de assistência à saúde, passando, assim, a ser importante definir assistência à saúde.
A saúde prevista no art. 196 tem ampla concepção, tendo em vista a sua dicção, que considera o direito à saúde como resultante não apenas da garantia do acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde, mas também de políticas sociais e econômicas que evitem o risco do agravo à saúde das pessoas. Saúde, no conceito do art. 196, engloba tanto os fatores que a determinam e condicionam (qualidade de vida), quanto a garantia de serviços públicos para a proteção, promoção e recuperação, que estão sob a competência do Sistema Único de Saúde.
Nesse ponto, deve-se, no âmbito do SUS, fazer considerações sobre o que seja assistência à saúde. Assistência à saúde, no nosso entendimento, são as ações e os serviços que se voltam para a assistência direta ao cidadão, usuário dos serviços de saúde. Não se pode considerar nesse termo “assistência à saúde” as demais ações e serviços que competem ao Poder Público no âmbito do SUS, como o planejamento, regulamentação, fiscalização, controle, monitoramento, avaliação, execução do fundo de saúde, elaboração do plano de saúde, definição das políticas de saúde em comum acordo com os conselhos de saúde, poder de polícia sanitária, ações das vigilâncias em saúde, entre outras.
Por isso, a participação complementar do setor privado no SUS somente pode se dar no campo em que a iniciativa privada pode atuar: na assistência à saúde. Fora desse campo, as atividades de saúde são privativas do Poder Público, não podendo, sob pena de se ferir a Constituição, permitir que o setor privado venha participar da gestão pública da saúde nos seus amplos termos, conforme já aconteceu em certas situações em que se pretende, mediante convênio ou contrato, passar a gestão pública da saúde para o setor privado. Isso será sempre um flagrante desrespeito à Constituição.
Por isso, importa refletir sobre o conceito de saúde e o conceito de assistência à saúde, demarcando o seu conteúdo para que não se corra o risco de passar para a iniciativa privada o que a ela não foi permitido constitucionalmente como campo de atuação.
Qualquer tentativa tendente transferir para o setor privado a gestão da saúde, seja parcial ou total, é inconstitucional e necessitará de ação da sociedade ou do Ministério Público para coibi-la.
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