De uma hora pra outra, a vida de José virou de cabeça para baixo. Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, José Luiz de Freitas viu-se em sua cama morto.
Fantástico: Mas e como é estar morto?
José Luiz de Freitas: Eu pensei assim: ‘no carnaval, eu vou sair de que? De fantasma?’.
Foi há quatro carnavais que Luiz começou a morrer. “Eu estava em um bloco, que era na terça-feira de carnaval. Só levei a identidade e o dinheiro, mais nada. Aí eu percebi que eu estava sem a minha identidade. Dali, eu já fui direto para a DP, mas estava muito cheio. Conversando com uma funcionária, ela falou que era inviável eu fazer boletim de ocorrência naquele dia”, ele conta.
Ele tentou várias vezes, em várias delegacias, fazer o registro de ocorrência. Mas não conseguiu, e resolveu tirar logo uma outra identidade. “O mesmo número, só com a expedição, logicamente, diferente”, ele explica.
Um ano se passou e surgiu a oportunidade de fazer uma viagem. Luiz precisava tirar um passaporte. Para isso, ele tinha que ter o comprovante eleitoral. E no guichê do TRE do Rio, ele tomou conhecimento da sua situação.
“O rapaz me falou no sistema que eu estava dado como falecido. E então, eu falei para ele: ‘então, você está falando com um fantasma’. Eu fiquei apático, impossibilitado de qualquer coisa, sem saber o que fazer”, lembra José Luiz de Freitas.
Essa foi só a primeira vez que ele ouviu que estava morto. “Eu fui tirar o seguro-desemprego de uma época que eu tinha trabalhado, já me mostrou que eu estava em óbito também no Ministério do Trabalho”, ele conta.
Luiz teve que ir a Brasília, na sede do Ministério do Trabalho, tentar resolver. “Foi quando um funcionário virou e falou, no meio das pessoas: “Cadê o defunto?”, ele diz.
Quatro anos depois, ele ainda não consegue trabalhar formalmente. “Eu estou impossibilitado de ter uma carteira de trabalho, de emprego”, relata Luiz.
No cadastro do INSS, Luiz aparece como morto. Mas a confusão é tanta que, nos registros, ele trabalhou mesmo depois de ter morrido. E ele se viu impotente em um mar de burocracia que o mais talentoso dos escritores não teria imaginado. “Já me senti deprimido, ansioso, de certa forma humilhado”, conta.
Luiz precisa ir a cada órgão de cadastro provar que está vivo. Cada vez é uma batalha. E ele nem sempre consegue. Começou então uma jornada para resolver esse problema de uma vez por todas. Como Luiz morreu e continuou vivo?
José Luiz de Freitas não sabia que, na hora em que ele perdeu a carteira de identidade, outra história começou a se desenrolar, em outro lado da cidade.
Ele só foi descobrir quando a Polícia Federal bateu na casa dele. “Foi quando eu soube de tudo o que tinha acontecido”, ele lembra.
No dia 31 de março de 2011, às 4 horas da manhã, um homem morreu no Hospital Rocha Faria, em Campo Grande. Não tinha família, nem amigos, nenhum acompanhante. Só o que ele tinha era uma mochila, com todos seus pertences e um documento: uma carteira de identidade onde se lia José Luiz de Freitas.
Quem reconheceu o corpo foi um funcionário que trabalha em um abrigo para moradores de rua, a alguns quilômetros dali.
“Ele sempre estava na unidade à noite e não vinha sempre para jantar, mas sempre bem cedo ele saía”, diz o diretor do abrigo Paulo Nascimento.
Qualquer abrigo é proibido de obrigar as pessoas a se identificarem.
Fantástico: Não precisa apresentar um documento?
Paulo Nascimento: Não.
Naquela noite, eram 362 internos. E o que morreu no hospital foi reconhecido através do documento encontrado na mochila.
Três dias depois, ele foi trazido para um cemitério, onde ele foi enterrado como indigente e logo depois exumado. Não existe vestígio do homem que foi enterrado e isso que dificulta o trabalho da Polícia Federal, que está investigando o caso. E o cartório diz que não vai desfazer a certidão de óbito até que seja encontrado o nome do homem que foi enterrado.
“Trata-se de um verdadeiro absurdo. É uma decisão totalmente irrazoável, arbitrária, porque o cidadão não pode ficar dependendo da identificação do verdadeiro falecido para ter o reestabelecimento da sua cidadania”, destaca Sérgio Guerra, professor de direito da FGV.
Em nota, o hospital disse que reconhecer o corpo era obrigação do abrigo. Até que se encontre o nome do homem desconhecido, José Luiz de Freitas estará, no sistema, morto.
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